quarta-feira, 25 de maio de 2011

A regra interna que criamos

omo muitos animais, repetimos o mesmo comportamento sem nos questionarmos por que estamos agindo assim

Barry Goldman, Los Angeles Times - O Estado de S.Paulo
Jacob é um golden retriever. Como muitos cães dessa raça, sua atividade predileta é buscar e trazer de volta uma bola de tênis. Nós atiramos uma bola, ele a traz de volta e a larga aos nossos pés. Isso pode continuar durante horas. Na verdade, não sabemos quanto tempo isso duraria porque sempre desistimos antes dele.

Mas Jacob às vezes vive um impasse quando fazemos esse jogo na piscina de meus parentes. Isso por causa de duas regras internas fixas que ele possui. A primeira é que ele deve permanecer em terra até chegar o mais perto possível da bola e aí nadar o restante do caminho. A segunda regra é que ele deve entrar na água gradualmente. Ele não saltará da borda.

Isso facilita a brincadeira no Oceano Pacífico, mas a piscina coloca um problema. Se a bola estiver mais perto de uma das bordas da piscina do que está dos degraus, tudo que ele faz é correr até a borda mais próxima, olhar par a bola tremendo de excitação e latir.

Cientistas cognitivos chamam esse tipo de dificuldade de "sphexidade", pelo comportamento da vespa sphex (também conhecida como vespa cavadora) fêmea. Ela aferroa e paralisa um grilo, guarda-o num buraco numa árvore e deposita seus ovos nele. Quando os filhotes de vespa saem dos ovos, eles têm um grilo fresco para comer. Mas a mamãe sphex também tem uma regra interna. Quando traz um grilo para a abertura do buraco, ela sempre entra para dar uma olhada antes de arrastá-lo para lá. Se um pesquisador mover o grilo para alguns centímetros de distância enquanto a sphex está dentro do buraco, ela repetirá o processo, trazendo o grilo de volta à abertura e entrando para dar uma olhada. Se o pesquisador mover o grilo novamente, a vespa repetirá o comportamento. Sua regra interna pede que olhe dentro do buraco antes de arrastar o grilo para dentro, e é isso que ela fará. Se o pesquisador mover o grilo 40 vezes, a sphex repetirá o comportamento 40 vezes. Não sabemos quantas vezes mais ela o faria porque os pesquisadores sempre desistem.

É divertido observar a "sphexidade" em animais. O truque, é claro, é sermos capazes de reconhecê-la em nós mesmos. Quais comportamentos nós, humanos, repetimos sem perceber vezes sem conta por alguma regra interna não questionada? A que circuito de estupidez inteiramente evitável estamos presos? Eis alguns candidatos: Continuamos a pensar que os americanos, por mais loucos que sejam, devem poder comprar armas, por mais letais que sejam. Columbine não teve nenhum efeito. Virginia Tech, nenhum efeito. Lunático após lunático, um assassinato sem sentido após outro, nada muda.

Alguém como Jared Loughner, que não parece saber se está a pé ou montado num cavalo, pode entrar numa loja de artigos esportivos e sair com uma arma semiautomática quase tão facilmente como pode comprar um saquinho de bolas de tênis. Continuamos a acreditar que as empresas podem regular-se a si mesmas.

Gananciosos de Wall Street quase explodem a economia mundial com seus instrumentos financeiros sintéticos insensatos, e nós continuamos a acreditar que a regulamentação pública de mercados financeiros asfixia a inovação. Gastamos centenas de bilhões de dólares em dinheiro do contribuinte para tentar consertar as consequências de suas inovações mais recentes e, no entanto, persistimos na crença de que regulamentar o setor pode ser não americano. Não podemos nem sequer convocar a vontade política para pressionar empresas para reduzirem salários e bônus dos mais egrégios facínoras.

Persistimos despejando sangue e riquezas intermináveis na guerra inútil e interminável às drogas. Após 40 anos, inúmeros bilhões de dólares e incontáveis vidas desperdiçadas na prisão, ainda é mais fácil um adolescente em Detroit comprar um papelote de cocaína do que uma embalagem com seis latas de cerveja. Quanto o crime organizado não terá enriquecido com o fato de as drogas serem ilegais? Quantas crianças não foram mortas nessa guerra?

Continuamos a acreditar - contra toda a lógica, todas as evidências e toda a experiência - que dar dinheiro à indústria de seguros com fins lucrativos é a maneira de prover assistência médica aos pobres e doentes. Não há dinheiro suficiente em assistência médica para instituições sem fins lucrativos fazerem uma tentativa, mas acrescentar uma camada de investidores para remover o topo as fará funcionar.

Continuamos a acreditar nas fantasias de bombas inteligentes, ataques cirúrgicos e guerras limitadas.

E continuamos a imaginar que um governo financiado por lobistas corporativos e dedicado a nenhum princípio superior do que impostos mais baixos vá ser o guardião do interesse público.

Essas ideias não estão funcionando desta vez. Elas não funcionaram na última vez ou na vez anterior a essa. Não sabemos por quê. E estamos todos parados aqui, latindo. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

É ADVOGADO, MEDIADOR DE DISPUTAS TRABALHISTAS E ESCRITOR

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O massacre da tarja preta


GILBERTO DIMENSTEIN
FOLHA DE SÃO PAULO - 08/05/11


O relógio biológico da adolescência é diferente;
o computador está tornando acordar cedo mais difícil


É UM MASSACRE da tarja preta contra crianças e adolescentes brasileiros, levados a tomar desnecessariamente remédios para supostos distúrbios psicológicos. Essa intoxicação tem respaldo de médicos, psicólogos, pais e professores.
Na semana passada, a Folha publicou a descoberta de psiquiatras e neurologistas da USP, Unicamp e Albert Einstein College of Medicine (EUA): 75% das crianças e adolescentes brasileiros que usam medicamentos tarja preta foram diagnosticados erroneamente como portadoras do chamado TDAH (Transtorno de Deficit de Atenção e Hiperatividade). A pesquisa será apresentada no final deste mês durante congresso na Alemanha.
Esse abuso bioquímico para controlar atitudes de crianças e adolescentes revela como os adultos têm dificuldade de entender e lidar com as novas gerações e até entender o mundo em que vivemos.

Vive-se num ritmo hiperativo de produção e disseminação de conhecimento. Por conta das redes digitais, as crianças e os adolescentes já nascem conectados e com um pé no mundo. São bombardeados por informações e se sentem aptos a compartilhar e interferir sobre o que veem, ouvem ou sentem. Na era das mídias sociais, todos somos, em certo grau, comunicadores lidando simultaneamente com uma multiplicidade de dados e estímulos.
Saiu recentemente um livro intitulado "Blur" (desfocado em inglês), escrito por Bill Novak, ex-jornalista do "New York" e diretor de um centro de estudos de jornalismo em Harvard, em que se afirma o seguinte: "Em três anos se produziu no século 21 mais do que nos últimos 300 mil anos."

É nesse ambiente que as crianças nascem e são treinadas, quase desde o berço, a jogar videogames cada vez mais velozes e complexos, o que, para muitos cientistas, desenvolve as habilidades cognitivas.
Esse universo hiperativo do virtual valoriza o presente, o agora, o já, tudo imediato, e se esvai com a velocidade de um novo aplicativo. Muito mais difícil ensinar coisas que não têm sentido imediato e que envolvem complexidades.
Existem até novas reações cerebrais. Mas tanta luminosidade das máquinas acaba gerando problemas. Existem evidências científicas mostrando que ficar de noite na frente da luz do computador atrapalha o sono, mexendo nos hormônios. O relógio biológico da adolescência já é naturalmente diferente; o computador está tornando acordar cedo ainda mais complicado.

Por que um estudante, acostumado com a interatividade e compartilhamento de informações, ficará tranquilo numa sala de aula com baixa interatividade, ouvindo o professor despejar conteúdos que não lhe fazem sentido?
Interessante que o Conselho Nacional de Educação tenha lançando, na semana passada, novas diretrizes para que o ensino médio seja estruturado em quatro eixos adaptáveis para cada local: cultura, ciência, tecnologia e trabalho. Além disso, parte das aulas pode ser dada a distância.
É um ensaio de ruptura com o obsoleto. Lembremos que a escola como conhecemos foi criada exatamente no tempo das chaminés, mirando-se na estrutura das indústrias, compartimentalizadas em departamentos separados. Até a sirene veio dali. O que se discute hoje é até que ponto os sistemas de avaliação, evidentemente necessários, não estão baseados na era da chaminé.

Até as universidades mais sofisticadas do mundo estão mudando suas práticas para cultivar seus alunos, estimulando mais a experimentação, montagem de projetos e trabalho em equipe. São desenvolvidos laboratórios apenas para desenvolver o empreendedorismo. Não são poucos os ícones da inovação que não conseguiram acabar seus cursos como Steve Jobs, Paul Allen, Mark Zuckerberg, e por aí vai.

Minha suspeita é de que essa medicação de tarja preta não seja uma solução para tratar um problema que, em muitos casos, é real, mas sim para colocar a disciplina acima da criatividade.
Como dizia Einstein, apontado como portador de distúrbio de atenção, para quem educar é estimular a imaginação ("mais importante do que conhecimento é a imaginação"), loucura é fazer sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes. Quem sabe se ele nascesse hoje não seria mais um medicado com tarja preta.

PS- Estou desenvolvendo aqui, numa parceria entre Harvard e MIT, um projeto que mistura educação, comunicação e urbanismo; seu foco é ajudar a desenvolver comunidades de aprendizagem, na busca de um jeito de fazer das cidades um meio que estimule a imaginação. O projeto entrou no ar na semana passada para colher críticas e sugestões (opencitylabs.org). Agradeço às contribuições dos leitores.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Reforma do Código Florestal já causa desmate

Maior derrubada de árvores na Amazônia, em especial no Pará e em Mato Grosso, é atribuída à expectativa de mudança na lei

Marta Salomon / BRASÍLIA - O Estado de S.Paulo

A expectativa de reforma no Código Florestal foi acompanhada pelo aumento do desmatamento na Amazônia, sobretudo no Mato Grosso e no Pará, Estados que registram os maiores índices de abate de árvores na região. A votação das mudanças no Código foi adiada para a próxima terça-feira, dia 10.
Os primeiros sinais do desmate foram colhidos no final do ano passado e no início de 2011, por meio do satélite japonês Alos, que permite detectar a degradação da vegetação, apesar da presença de nuvens na região. 
Em março, os satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) também captaram um desmatamento maior, por meio do Deter, sistema de detecção em tempo real.
As imagens de satélites vêm sendo confirmadas por fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
A operação de campo, ainda em curso, recebeu o nome de "Disparada". Por ora, já foram aplicadas multas por crimes ambientais estimadas em R$ 83 milhões. Também houve apreensão de gado e equipamentos.
A pecuária é a principal atividade do município de Vila Rica, no norte do Mato Grosso, um dos focos da Operação Disparada. Outro município que chamou a atenção dos fiscais foi Nova Ubiratã, mais ao centro do Estado, área ocupada pela produção de grãos, como a soja.
Padrão diferente. Segundo a área ambiental do governo, houve uma mudança no padrão do desmatamento desde o segundo semestre do ano passado.
Parte do aumento do desmate pode ser atribuído ao aumento do preço de commodities, como carne e soja. Mas as autoridades atribuem uma boa parte à perspectiva de mudanças nas regras de preservação do ambiente e a uma tentativa de criar novas áreas de ocupação consolidada na Amazônia.
A proposta de reforma do Código Florestal em debate na Câmara permite a regularização das áreas desmatadas até julho de 2008, data da primeira edição de decreto, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com punições para crimes ambientais. Os proprietários que desmataram ilegalmente terão prazo de um ano para aderir a programas de regularização ambiental. Parte da vegetação nativa em áreas de preservação permanente ou de reserva legal não terá de ser recomposta, segundo proposta acordada com o governo. A expectativa de tolerância a novos desmatamentos não se confirma.
Os dados oficiais sobre o aumento do ritmo das motosserras, sobretudo em março, só serão divulgados pelo Inpe no final de maio. O Ministério do Meio Ambiente avalia que será mais difícil manter neste ano a redução nas taxas de desmatamento.
A taxa oficial é medida entre agosto de um ano e julho do ano seguinte. Em 2010, foi anunciada a menor taxa desde o final dos anos 80, quando o governo começou a medir o desmatamento na Amazônia. O corte de árvores alcançou 6.451 quilômetros quadrados, o equivalente a mais de quatro vezes o tamanho da cidade de São Paulo.
Redução ameaçada 6.451
km2, equivalente a mais de quatro vezes a cidade de São Paulo, foi o índice de desmatamento na Amazônia em 2010, o menor desde o fim dos anos 1980
PARA ENTENDER
Vários pontos da reforma do Código Florestal podem levar a aumento no desmatamento. As Áreas de Preservação Permanente (APPs), por exemplo, serão descontadas do cálculo da área de reserva legal das propriedades, medida que reduz a área protegida nos imóveis rurais. A área de reserva legal também poderá ser usada para atividades de "baixo impacto".


Marina Silva pede adiamento da votação do Código Florestal



O presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Marco Maia, disse à imprensa que colocará o relatório do Deputado Aldo Rebelo que propõe mudanças viscerais  no Código Florestal Brasileiro em votação na próxima terça-feira, dia 3 de maio. O relator confirma que apresentará o texto final na próxima segunda-feira, dia 2, para que a votação ocorra no máximo até quarta-feira, dia 4. Sem tempo para a sociedade analisar e se manifestar sobre a proposta.

A falta de transparência e o açodamento na votação não são coerentes com a democracia em que vivemos, com a importância e o aprofundamento que o tema merece. Não existe consenso ainda na proposta defendida pelo relator. Por isso, mais uma vez, é necessário que os cidadãos se manifestem sobre o que está sendo feito em seu nome.

O Código Florestal diz respeito a todos nós. É a principal lei que protege nossas florestas e biodiversidade. Já perdemos 93% da Mata Atlântica, mais da metade do Cerrado e da Caatinga e quase 20% da Amazônia. As perdas de florestas são tão assustadoras em todo o mundo que a Organização das Nações Unidas (ONU) definiu 2011 como o Ano Internacional das Florestas. A intenção é fazer uma convocação aos governos, empresários e cidadãos do mundo para a responsabilidade de recuperar as áreas já degradadas e  protegermos adequadamente o que ainda nos resta.

Padecemos também de graves problemas de contaminação dos rios e aquíferos por agrotóxicos e adubação excessiva. E para piorar, a maior parte de nossa contribuição para o agravamento da crise climática vem da forma como produzimos carne e grãos, ou seja, de como usamos nossas terras e florestas. Fontes que respondem por quase 70% das emissões de gases de efeito estufa.

Na última década conseguimos importantes conquistas na luta contra o desmatamento. O ritmo de destruição da AmazÃ?nia caiu cerca de 70% nos últimos seis  anos, evitando que fossem lançadas na atmosfera mais de quatro bilhões de toneladas de CO2. Em decorrência disso, o Brasil pode criar uma Política Nacional de Mudanças Climáticas e assumir compromissos de redução das emissões de gases de efeito estufa. Metas assumidas pelo Brasil na Conferência de Copenhagen pelo próprio Presidente Lula.

Mas esses promissores resultados são apenas o começo de uma mudança gigantesca que precisamos fazer para conseguir desenvolvimento com sustentabilidade. Podemos fazer nossa economia crescer, mas sem destruir nosso meio ambiente. E a maior garantia que a sociedade pode ter de que continuaremos avançando é a existência de uma forte governança ambiental no país, da qual o Código Florestal é o principal esteio. Ele estabelece os limites para o uso do nosso solo, de modo a permitir que todas as atividades econÃ?micas possam acontecer de forma cuidadosa para preservar a qualidade de vida de todos nós e das próximas gerações.

No lugar de discutir a atualização do Código Florestal para diminuir a proteção das florestas e conferir anistias aos que descumpriram a lei, deveríamos debater uma política florestal que melhore a proteção das florestas, que crie políticas de incentivo para promover o desenvolvimento do setor agrícola e florestal e a geração de empregos e melhoria da renda no setor rural numa escala muito maior. E, obviamente, discutir os ajustes necessários e as políticas de apoio para que os produtores possam superar os passivos ambientais e para que nossa agricultura possa ganhar em qualidade.

Somos uma potência ambiental, detemos mais de 20% das espécies vivas conhecidas, 11% da água doce e a maior floresta tropical do mundo, que produz mais de 20 bilhões de toneladas de água por dia, além de uma rica diversidade de biomas. É essa riqueza natural que nos permite ser um dos campeões mundiais de produção agrícola.

Não podemos decidir sobre o futuro de nosso desenvolvimento dessa forma. A dificuldade de se chegar a um consenso entre o governo e o relator do projeto, a falta de transparência e participação social com que ambos estão discutindo demonstram, claramente, a falência desse tipo de negociação. Os cientistas nacionais estão clamando por participação, assim como os agricultores familiares, entidades ambientalistas e profissionais de vários setores.

Todas essas razões me levam a fazer um apelo à Presidente Dilma Rousseff e aos deputados pelo adiamento, por alguns meses, da votação anunciada para a semana que vem. Para tanto, poderíamos adiar o prazo de averbação da reserva legal previsto para 11 de junho, de forma que tenhamos um ambiente menos açodado para o diálogo.

Marina Silva, 53, ex-senadora do Acre pelo PV, foi candidata do partido à Presidência da República em 2010 e ministra do Meio Ambiente do governo Lula (2003-2008)

terça-feira, 3 de maio de 2011

O verde da maturidade



Pedro Augusto da Silva chegou ao Acre em 1945. Era o último ano da Segunda Guerra Mundial. Nascido em Messejana, no Ceará, ele integrava a leva final dos chamados “soldados da borracha” legião de egressos do Nordeste brasileiro que seguiram para os seringais da Amazônia para extrair borracha, como parte do esforço de guerra. Foi ali, distante do Estado natal, que conheceu Maria Augusta da Silva, também cearense, nascida em Paracuru. De lá nunca voltaram. Ele, aos 84 anos, está até hoje no Acre. Ela morreu cedo, aos 36 anos. Tempo suficiente para ter 11 filhos, oito dos quais sobreviveram. Um deles, Maria Osmarina Silva de Souza.

Marina era apelido dado por uma tia. Acabou incorporado oficialmente ao nome quando disputou a eleição de 1986. Assim como ocorreu com Luiz Inácio Lula da Silva. Naquele tempo, candidata a deputada federal, não podia usar apelido como “nome de guerra” eleitoral. Hoje, com o nome que escolheu, agregado ao sobrenome de casada, chama-se Maria Osmarina Marina Silva de Souza Vaz de Lima.

Iniciou a trajetória política como militante do Partido Revolucionário Comunista (PRC), agremiação que não atuava como legenda formalmente constituída. Vereadora, deputada, senadora, ministra do Meio Ambiente, foi apontada em 2008 pelo jornal britânico The Guardian uma das 50 pessoas no mundo capazes de ajudar a salvar o planeta. Grande fenômeno da eleição de 2010, rompendo a esperada polarização entre Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB), foi determinante para realização do segundo turno.

O POVO – Sua campanha explorou bastante a narrativa da menina que trabalhou desde muito cedo, que se escolarizou tarde, que veio da pobreza e enfrentou vários problemas de saúde. Mas como se deu a guinada daí para começar a estudar e, inclusive, se politizar?

Marina – Para mim, o marco da minha entrada na política foi o encontro com a Teologia da Libertação. Quando, em 1976, eu conheci o Clodovis Boff, o Leonardo Boff, num curso de liderança sindical rural feito pela CPT, a Comissão Pastoral da Terra. Eu morava como postulante a freira, na Casa Madre Elisa, lá em Rio Branco. E vi, durante a missa, o cartaz que falava desse curso. Aí eu pedi para minha madre mestra para fazer o curso.
OP – Até então, a senhora não tinha envolvimento político algum.

Marina – Não tinha. Eu era uma adolescente de 17 anos. Tinha saído do seringal com 16 anos. Tinha me alfabetizado pelo Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização). Tinha feito educação integrada, que equivalia ao primário. E tinha iniciado o postulantado na Casa Madre Elisa, e a quinta série do ginásio normal no Instituto Imaculada Conceição. As freiras foram as pessoas que me acolheram. Uma parte delas era bem conservadora. E outra parte, uma parte pequena, era ligada à Teologia da Libertação. E foi através desse encontro com a Teologia da Libertação que eu comecei a me interessar pela política. No início, não a política partidária, mas a política de entender que a gente tinha um papel na sociedade, que a gente deveria se organizar. E que as pessoas que eu tinha deixado lá – minha família, os amigos, meu pai, meus vizinhos, índios, tinham seus direitos. Que a gente, naquela época, estava a maior parte sendo expulsa das terras. Porque os fazendeiros compravam os seringais que tinham sido abandonados pelos antigos patrões. Os fazendeiros compravam e expulsavam os seringueiros, que estavam lá, agora, como posseiros. Então, eu comecei a me interessar por essa luta. E foi interessante que, dentro do colégio, do convento, as freiras, as conservadoras, chamavam o Chico Mendes e o dom Moacyr (Grechi) de comunistas. Que é como se fosse “pessoas más”. E eu ficava incomodada com aquilo, porque eles defendiam os seringueiros, defendiam os índios, as pessoas que eu tinha uma ligação muito próxima. Aí, poxa, quem defendia os índios era comunista, e comunista era considerado coisa ruim? Aquilo não batia muito na minha cabeça.
OP – A senhora falou da fé, e isso foi algo que causou muita polêmica na campanha do ano passado. Muita gente criticou, nas diversas candidaturas, o que se via como proselitismo. Como é que a fé interfere na visão de mundo e na visão política da senhora, e como essas dimensões se articulam e, eventualmente, se separam?

Marina – Se integram no campo dos valores e se separam no campo do oportunismo e do utilitarismo. Eu, graças a Deus, nunca fiz do púlpito um palanque, e nunca fiz do palanque um púlpito. Porque sempre fui muito respeitosa com minha fé e com a fé das pessoas. Quando era católica não fazia isso. Como cristã evangélica que sou hoje, da Assembleia de Deus, também não o fiz. Em todas as igrejas que eu fui durante a campanha, nunca falei de candidatura no púlpito. Porque eu entendo que, se as pessoas estão devidamente esclarecidas, elas vão saber fazer as suas escolhas.

OP – Voltando ainda à questão anterior, qual foi o papel do Chico Mendes na sua formação?
Marina – O Chico Mendes foi amigo, foi irmão, meio pai e professor. Então, acho até que boa parte da forma como eu tenho agido na minha vida pública tem muito o que eu aprendi com ele. O Chico era um homem de diálogo. Firme, muito coerente com as coisas que ele acreditava e defendia, mas não era uma pessoa intransigente, não era uma pessoa fechada. Ele conversava até mesmo com seus piores adversários, sem abrir mão dos seus princípios. Então, o Chico foi e ainda é uma inspiração para mim. Considero-me alguém que é parte do legado do Chico Mendes. Não sou uma herdeira, que eu não gosto dessa história de herança. Herança é como se fosse um espólio, que você tenta ficar com aquilo para você. Não. O Chico deixou um legado. E, no Acre, eu, o Jorge (Viana, ex-governador), o Tião (Viana, atual governador), tanta gente lá é parte desse legado.

OP – A defesa do meio ambiente veio como algo natural para alguém nascido e criado em relação tão imbricada com a floresta? Ou houve um marco da tomada de consciência?
Marina – O amor pela floresta, com suas belezas, riquezas, sua força, sua fragilidade, suas revelações e seus mistérios, isso já estava dentro de mim desde sempre. Agora, quando começaram a vender os seringais, destruir a floresta para transformar em capim, você, que nasceu e se criou vendo uma castanheira de dois metros e vinte de diâmetro, vendo os veados e as cotias correrem na restinga, sentindo o cheiro da água, pisando nas folhas secas no período das secas, bebendo água das folhas no período das cheias, isso era algo muito… incompreensível. Quando eu comecei a entender que aquilo era uma decisão política, e ajudada por aquela concepção das comunidades (eclesiais) de base, aí eu fiz uma integração entre luta política e proteção da floresta. E só posteriormente, quando o Chico começou a ir para o Rio de Janeiro, e conheceu o (Fernando) Gabeira, o (Alfredo) Sirkis (hoje deputado federal pelo PV do Rio), o Fábio Feldman (ex-deputado federal por São Paulo), pessoas que estavam trabalhando a questão da ecologia no Brasil é que nós fomos entender que aquilo que nós fazíamos era defesa da ecologia. A gente tinha a prática, mas não tinha o conceito. E que bom que foi assim. Porque o Brasil foi o país que cunhou a ideia do socioambientalismo. Antes, era o ambientalismo pelo ambientalismo. O Brasil integrou a visão ambiental junto com a questão social. E isso se deve ao Acre e ao Chico Mendes.
OP – Toda a vida política da senhora foi ligada ao Partido dos Trabalhadores. Ficaram traumas da saída para integrar o Partido Verde?

Marina – A decisão de sair do PT foi muito difícil. Tenho uma trajetória de 30 anos dentro do PT. Foi graças ao PT que eu participei da política. Na realidade do meu estado, jamais teria qualquer possibilidade de participação em partidos tradicionais, como MDB, Arena… Aqueles partidos obscuros da época em que o PT foi fundado. Mas o PT não foi capaz de compreender a questão do meio ambiente como compreendeu a questão da democracia e a luta em defesa da melhoria de vida do povo mais pobre. E sempre foi uma bandeira minha e do Chico Mendes lutar pela democracia, pela inclusão social e pela proteção do meio ambiente. No quesito proteção do meio ambiente, o PT se comportou como um partido tradicional qualquer. Foi por isso que eu saí e entrei no PV. Foi difícil, mas não me arrependo.

OP – A senhora disse que já sabia que o PV tinha problemas. Mas, lhe surpreende o tamanho das dificuldades que tem encontrado?

Marina – Olha, eu gosto muito do dito popular que diz que quanto mais fortes os ventos, mais fortes são as árvores. E eu sempre encontrei muitas ventanias nos lugares em que passei. Mas eu tive a felicidade de entrar num partido que tinha, também, árvores provadas a vento. O Gabeira é uma pessoa que tem lutado para que esse partido tenha a plataforma verde comprometida com as transformações em todos os níveis. Eu me sinto acolhida. E aqueles que temporariamente estão contrários a essa atualização do partido, eu espero que se convençam de que isso é o melhor. Por quê? Nós não podemos ser um partido que tem as melhores propostas, em termos programáticos, para a saúde, a educação, a segurança, geração de energia, cuidado das florestas e, no plano político, a gente não ser capaz de ter a mesma abertura, para que o partido integre à sua prática política os segmentos da sociedade que estão querendo fazer parceria conosco. Mesmo que eles não sejam filiados. Que ele (o PV) seja capaz de integrar novos filiados de qualidade. Criar processos abertos para discutir as questões que são relevantes no âmbito do município. Nós vamos ter uma eleição em 2012. Agora, em 2011, é o momento de discutir as cidades sustentáveis. Como é que a cidade de Fortaleza pode se desenvolver, mas sem desrespeitar o Código de Posturas da cidade, sem desrespeitar o Plano Diretor. Como é que faz para ter mobilidade, onde as pessoas possam ter transporte de qualidade, vida digna na área de saúde, de educação.
OP – Qual avaliação a senhora faz sobre esse começo de governo Dima Rousseff?
Marina – Como eu tenho posição de independência, fico muito tranquila para falar. Acho que tivemos alguns avanços na política externa. O Brasil estava numa posição inadequada, se aproximando de ditaduras, como é o caso do Irã, (Mahmud) Ahmedinejad (presidente iraniano), uma série de coisas que criaram um estranhamento muito forte. Porque nós temos uma tradição de respeito à democracia, aos direitos humanos. E o Brasil estava dando sinalizações muito ruins. Nesse caso, a diplomacia brasileira e a presidente Dilma reposicionaram a política externa, o que é positivo. Em política social, é dar continuidade, no meu entendimento, aos programas em andamento. E eu espero que agora seja o passo de se criar igualdade de oportunidades. Processos estruturantes de transformação da vida das pessoas, sobretudo da juventude. Para que possam ser integrados ao processo produtivo brasileiro. Eu torço para que dê certo. Estamos no começo do governo. Torço para que essa priorização que ela (Dilma) falou que vai dar à questão da inclusão social, da base da pobreza, eliminar as desigualdades sociais, possa ser vitorioso.

OP – A senhora pretende se candidatar a presidente em 2014?

Marina – Eu tenho dito a todos que me fazem essa pergunta que não existe cadeira cativa de candidato a presidente da República pelo Partido Verde. Eu vou continuar minha militância, agora como cidadã brasileira. Não sou mais senadora, não sou candidata. Estou agora criando os espaços para a militância na sociedade, de forma suprapartidária, e dentro do Partido Verde. Mas não existe essa história de cadeira cativa de candidato. Eu quero é que esse projeto de pensar o Brasil, com justiça social, respeito à diversidade cultural, respeito à democracia e à proteção do meio ambiente, e que o País possa ser economicamente próspero, projeto possa ser relevante. Ele sendo relevante, eu estou com ele, em qualquer que seja a condição.

OP – Mas, se depender da sua vontade, a senhora pretende ser candidata?

Marina – Se você me pergunta isso agora, eu respondo a mesma coisa: eu não quero ficar, a priori, nesse lugar de candidata. Quero ficar como militante do Partido Verde e militante da sociedade brasileira pela causa da sustentabilidade e da mudança de modelo de desenvolvimento para o Brasil. Quando você tenta aprisionar o sucesso, ou repetir o sucesso, isso é o primeiro passo para o fracasso. Você tem que viver a política de forma viva, de forma única, no momento em que ela se coloca. E eu não vou ficar o tempo todo como se fosse a candidata. E se aparecer um candidato melhor do que eu? Quero ter a liberdade de poder escolhê-lo para representar o projeto da sustentabilidade, assim como o Partido Verde me escolheu em 2010.

OP – A senhora acompanhou o debate em torno do artigo do Fernando Henrique Cardoso, sobre a quem fala a oposição?
Marina – Eu ainda não tive tempo de ler o artigo, porque eu estava fora do Brasil e cheguei hoje (a entrevista foi feita em 16 de abril). Eu só li comentários na Internet. Não gostaria de formar a minha opinião sem antes ler cuidadosamente o artigo. Agora, eu acho que a oposição no Brasil, tomara que tenha aprendido com as eleições que nós fizemos. E a situação também. Porque os brasileiros estão mostrando claramente que não querem situação por situação, e nem oposição por oposição. A oposição tem de aprender que existem coisas que são feitas pelo governo que são boas e que merecem ser respeitadas e aprovadas. E os governos, quem tá na situação tem de aprender que existem coisas que às vezes estão sendo feitas e que não são boas para o interesse do País, para o interesse da população, e que deve ouvir aquilo que está sendo dito pela oposição, como sinal de alerta para corrigir rumos.

OP – O ponto central, ou mais polêmico, colocado pelo Fernando Henrique é acerca de para quem fala a oposição. Ele defendeu que, do ponto de vista estratégico, não se priorize falar para o chamado “povão”. A senhora e o PV sabem para quem estão falando?
Marina – Devemos falar para todos os brasileiros. Inclusive para os eleitores da Dilma, os eleitores do Serra, para os meus eleitores, para os eleitores do Plínio. Por que eu vou deixar de falar para as pessoas? Na campanha, falei para todas as pessoas. Porque o voto não pode ser privatizado por nenhum partido, por nenhum governo. O cidadão é livre, depois que vota, para mudar de opinião, para pensar outras alternativas.
Jornal o POVO